Quinta-feira, 24 de julho, 13h. Depois de dois dias e meio de marcha, mais de 600 integrantes do MST chegavam à sede do INCRA, em Porto Alegre, para reivindicar o atendimento de um acordo que prevê assentar duas mil famílias no Rio Grande do Sul ainda este ano. O primeiro prazo, de assentar mil famílias até abril, não foi cumprido.A marcha começou cedo, antes das 7h. A alvorada no ginásio da Federação dos Metalúrgicos de Canoas foi às 4h. No meio da manhã, quando entravam em Porto Alegre, os trabalhadores foram recebidos por um enorme contingente armado da Brigada Militar. Todos foram revistados, muitos colocados contra a parede, seus pertences vasculhados, mesmo que se soubesse que nada “perigoso” seria encontrado, como não foi.Quando a marcha foi interrompida pela polícia, os jornalistas das grandes empresas de comunicação estavam lá para captar que os sem terra seriam abordados como criminosos. Nas notícias que escreveram depois não estranharam isso. Pareceu-lhes justo ou normal. O que suas imagens e textos nunca registram é que esses trabalhadores organizados, homens e mulheres humildes, são humilhados pelas forças de segurança. São oprimidos. O noticiário os confunde (e é impossível acreditar que faça isso inocentemente) com pessoas oportunistas e violentas, mesmo quando são vítimas do oportunismo do sistema e da violência de estado.As iniciativas do jornalismo independente, sejam elas tocadas por jornalistas formados ou não, acabam sendo, quase sempre, os únicos espaços em que movimentos sociais que contestam a estrutura e a lógica do sistema podem expor suas verdades.Naquele dia, enquanto a mídia corporativa selecionava uma ou outra declaração oficial recolhida às pressas, preparando as informações que iriam novamente envenenar a opinião da população contra um movimento popular legítimo; no momento em que o superintendente Mozart Dietrich explicava a dezenas de integrantes do MST, no auditório do oitavo andar do INCRA, que está tentando adquirir áreas para assentamentos, mas que não pode divulgá-las nem para o próprio Movimento, com receio de que a informação chegue aos latifundiários e que eles estraguem as negociações, pressionando os fazendeiros a não venderem as terras, como já fizeram antes, duas jovens lideranças do MST estadual participavam, por uma hora e meia, de uma espécie de entrevista coletiva informal concedida a seis blogs gaúchos. Uma conversa franca, aberta, reveladora, sem maquiagens. Dessas que nunca chega à população pelas páginas dos grandes jornais e revistas. Contraditoriamente ou não, foi numa sala cedida pelo Sindicato dos Jornalistas, no centro da cidade, onde encontramos Gilson, filho de assentados, 23 anos de idade e desde os quatro vivendo em acampamentos e assentamentos, e Cristiane, também filha de assentados e há dois anos acampada em Tupanciretã, formada numa escola do Movimento em curso técnico agropecuário, com habilitação em agroecologia, ambos integrantes do setor de frente de massa do MST.Entrevistadores: Gustavo Türck (
Alma da Geral); Claudia Cardoso (
Dialógico); Wladimir Ungaretti (
Ponto de Vista); Hélio Paz (
Resistência pós-moderna); Rodrigo Cardia (
Cão Uivador) e Jefferson Pinheiro (
Agência Subverta!).
As fotos, que acompanham a entrevista abaixo, são uma seqüência de acontecimentos durante a marcha, desde a saída do acampamento em Nova Santa Rita até a hora em que os sem terra deixaram o Incra, depois de ocuparem o prédio por oito dias.
Gustavo (Alma da Geral):
Você está a quanto tempo no Movimento?Gilson (MST): Eu tinha quatro anos de idade... Hoje tenho 23 anos.
Gustavo:
Então você praticamente cresceu dentro do Movimento...Gilson (MST): Exatamente.
Cristiane (MST): Antes de ir acampar eu morava com meu pai, que também é assentado há uns oito anos, na cidade de Jóia.
Gustavo:
Qual a finalidade da marcha e a necessidade de fazer pressão in loco no INCRA?Cristiane (MST): O principal objetivo desta marcha que iniciamos em Nova Santa Rita é vir até o INCRA cobrar aquele acordo que fizemos no final das marchas do ano passado, quando íamos rumo a Coqueiros do Sul. O INCRA e o Ministério Público Estadual assinaram esse acordo de assentar mil famílias até abril, duas mil famílias até o final do ano. E nós já passamos da metade do ano e ele ainda não cumpriu nada.
Gustavo:
Vocês têm informação da quantidade de famílias, que desse acordo eles assentaram?Cristiane (MST): Saiu agora uma área pequena em são Gabriel, que cabe no máximo 40 famílias.
Ungaretti (Ponto de Vista):
Nós estamos num processo eleitoral e ontem eu fotografei todos os candidatos a prefeito dessa cidade, com seus respectivos cabos eleitorais, dentro da Federasul, uma entidade patronal, e nenhum deles recebeu, como candidato, os integrantes do Movimento que entraram na cidade de Porto Alegre. O que vocês acham disso?Gilson (MST): No planejar a marcha nesse momento eleitoral, pensamos: nós podemos sair às ruas, erguer as bandeiras, dialogar com a sociedade, fazer o debate. Estamos num momento eleitoral em que muitas forças e entidades da esquerda estão envolvidas nas campanhas...
Sobre o fato de não nos receberem, nós do Movimento Sem Terra apostamos no Lula e ele não deu retorno nenhum pra nós. Chegamos até a dizer que ele traiu a classe trabalhadora. Portanto, dali pra frente (da sua eleição), não apostamos mais em candidato e não acreditamos mais em mudanças radicais através apenas do voto – no supermercado Nacional, que nós íamos fazer um ato em frente, nós estávamos denunciando o capital, então veio a repressão – é necessário outro argumento, fazer um outro fato da democracia, além do voto. Porque pelo voto, pelos candidatos, pelos governos não se pauta e não se faz nada da classe trabalhadora, dos pobres e dos oprimidos.
Ungaretti:
Eu acompanhei a marcha e percebi que a imprensa, a mídia corporativa, só estava presente exatamente no momento em que a Brigada Militar começa a revista. Ela não acompanhou a marcha, só está presente num ato de revista de vocês. E, como jornalista tenho uma opinião por que isso acontece dessa forma. E mesmo que possa parecer óbvia a pergunta e a resposta, eu gostaria de escutar, vocês estão enxergando a forma como a mídia corporativa, a grande mídia faz a cobertura dos fatos?Gilson (MST): Na verdade, não deu tempo ainda de fazer reflexões mais profundas do que aconteceu hoje quando a Brigada nos parou e revistou. Então vou colocar mais uma opinião pessoal minha do que representando um coletivo, mas o sentimento que dá de a mídia estar no local, na hora em que tem um pelotão da Brigada esperando a marcha dos Sem Terra que vinha e vai dar de frente com eles, é justamente que a mídia do alto escalão, que é como nós chamamos, ela não está interessada... Nós podemos marchar 40, 400, 500km...
Ungaretti:
Vocês têm consciência do número de pessoas trabalhando lá dentro (da marcha), até travestidos de jornalistas, mas que na verdade são dos serviços de Segurança, fotografando e filmando vocês? Hoje eu vi vários, que aparentemente são jornalistas e que, na verdade, são funcionários da Segurança (do Estado). Por que estou fazendo esta pergunta? Porque esta era uma prática da ditadura. Em princípio, vivemos num país democrático, e isso não poderia ocorrer hoje. Esta prática de fotografar o rosto de quem está participando de atividades de movimento sociais é ilegal. Vocês têm consciência de que isso está sendo feito?Gilson (MST): Não diria que nós temos consciência, mas sabemos que a repressão é tanta, principalmente no Rio Grande do Sul contra os movimentos sociais, e especialmente contra o MST, que tem pessoas infiltradas nos acampamentos, nas marchas, nos assentamentos. Então, nós estamos sendo pesquisados, passo a passo que nós demos. Tem oito companheiros nossos que estão sendo processados pela tal de Lei de Segurança Nacional, que é da época da ditadura. Então nós entramos num momento muito difícil, o MST e outros movimentos sociais.A tática do capital e do governo é sempre tentar acabar pelos mais fortes, então como o MST é o movimento que mais tem massa, que mais sai às ruas, então atacam primeiro o MST, depois o MAB (Movimento dos Atingidos por Barragens), o MPA (Movimento dos Pequenos Agricultores), a UJS (União da Juventude Socialista) e assim por diante.
Claudia (Dialógico):
Em Coqueiros despejaram vocês de uma área legal do Movimento. Esta revista que sofreram hoje é legal? Como é o aparato jurídico pra vocês se defenderem desses ataques da repressão do estado? Vocês estão revertendo isso?Gilson (MST): O que aconteceu em Coqueiros é que o estágio da luta foi crescendo e nós tínhamos dois acampamentos, o Josiel Alves e o dos cabritos, e as duas áreas eram cedidas por apoiadores pra nós montarmos os acampamentos, então estávamos legal.
A justificativa da polícia e do Ministério Público, que foi o MP quem desenvolveu um relatório nos processando, é que os acampamentos ali geravam margens de conflito na região e então tinham que ser retirados dali. Eles retiraram o acampamento da área cedida pelos apoiadores, os acampamentos tinham horta, plantavam mandioca, batata, repolho, tinha 50 vacas, mais de 200 cabeças de porco, tinha estrutura, escola... Tiraram dali e colocaram nas margens da rodovia 386, em Sarandi, onde tinha interdito proibitório da BR. Então, olha a contradição, eles nos tiram de uma localidade cedida e colocam numa área onde tem interdito proibitório, que não pode ser ocupada por nenhum ser humano. Dali dois dias veio o oficial de justiça dando prazo de uma semana para o acampamento ser retirado de novo. Depois, fizeram uma negociação para 90 dias. Estamos esperando pelo processo dos 90 dias, provavelmente o acampamento vai ser retirado de novo. Temos advogados que são apoiadores do Movimento Sem Terra, que abraçam a causa, que estão tentando recorrer, mas sabemos que nós não estamos lidando com a Constituição, com a Lei, nós estamos lidando com um estado que, independente de lei, está fazendo tudo pra nos acabar. Até no relatório do MP deixam bem claro: “É preciso acabar com a espinha dorsal do MST”. Quebrar a espinha dorsal é tu não andar, é aniquilar.
Jefferson (Agência Subverta!):
De que forma esta estratégia do MP está funcionando? Eles estão conseguindo desmobilizar os integrantes do Movimento?Gustavo:
Como está sendo na base do Movimento estas ações da BM? Porque as pessoas nos acampamentos são simples, é mais ou menos um terror que o Estado está empregando na base do Movimento. Vocês já estão sentindo algum efeito das pessoas estarem saindo dos acampamentos?Cristiane (MST): Nem tanto. Devido a alguns trabalhos de base que nós fizemos com a companheirada, eles entendem que a luta deve prosseguir, mesmo com este ataque, e que, por mais difícil que seja esta fase, ela deve ser superada. Nós não tivemos muitas perdas, mas é um processo bem difícil.
Ungaretti:
Em que medida, toda a política assistencialista do governo Lula, com bolsa família, etc, está contribuindo para um certo grau de isolamento? Está ou não? O fato de ter toda uma política assistencialista, isso também tem desmobilizado?Cristiane (MST): Isso influencia um pouco, e agora teve mais um aumento de 7% da bolsa família, então, principalmente na massificação, quando a gente vai conversar no trabalho de base nas cidades, algumas pessoas não vão acampar, justamente porque recebem essa bolsa família. Às vezes, mesmo que more numa casinha que esteja caindo aos pedaços, se ganham essa ajuda do governo, preferem ficar ali, sabem que vão ter aquele dinheirinho no final do mês, e pra que ir lá sofrer embaixo da lona?
Claudia:
Estar dentro do Movimento traz um tipo de consciência, de educação da importância de ser um acampado, um assentado, a ponto de suportar toda uma repressão do Estado e mais, de lutar compreendendo que se tem uma Constituição, direitos, a começar pela terra. Vocês estão pedindo por trabalho, querem trabalhar. Entendem que vão sofrer um tipo de violência, mas estão lá. Parece que isso dá até mais vontade de continuar na luta mesmo. Eu venho da classe média, que está completamente desmobilizada, completamente alienada. É onde se acha que o MST é baderneiro, porque não se pode trancar uma rua pro carro passar. Isso é muito chocante, porque a princípio esta classe média tem escola, tem sua casa... Como se dá esse processo educativo, essa consciência da importância da luta e de se viver assim, apesar de toda a adversidade? Porque vocês são duas gerações que estão vivendo na estrada. Eu que sempre tive uma casa, queria saber como é o processo educacional, como se formam politicamente esses jovens que estão na luta. Como se dá esse trabalho de base?Gilson (MST): O Movimento Sem Terra, ao longo da sua história, não é simplesmente um movimento que luta pela terra. A terra é um caminho e um dos principais objetivos, mas nada adianta chegar acima da terra sem minimamente ter consciência política, então o Movimento também trabalha pra isso. A gente sabe que não é 100% dos que estão no Movimento, mas boa parte das pessoas têm essa consciência. Esse trabalho (de base), a receitinha pronta não tem como a gente colocar, mas o Movimento tem uma militância bastante jovem nos últimos tempos. E esta militância já está desiludida quando vem pra dentro do Movimento. Ela já meio que descarrega de tudo lá fora e entra com tudo.
Pra tu entrar pro Movimento, com todo o terror que a mídia faz, todo o terror que muitas vezes as pessoas colocam sobre o movimento: “Uma favela é mil vezes melhor que o Movimento Sem Terra”, entendeu? Ou tu chega no Movimento porque não tem mais pra onde ir, está perdido na vida, ou tu chega no Movimento por consciência, porque é filho de assentado ou porque tem simpatia. Nós sempre dizemos que temos que ser também um pouco psicólogos, porque a sociedade que nós vivemos tem e carrega vícios e desvios humanos de monte. Então as pessoas chegam no Movimento com um monte de vícios e desvios. Tudo que vocês imaginarem pode ter...
E aí se tem as linhas internas, começa a organização interna, começa os debates, os estudos. O Movimento tem curso de formação, formar militantes, tanto do ponto de vista político, quanto do ponto de vista formal, escolas... O Movimento tem esses cursos que no decorrer da sua história, de tantas lutas, ele foi conseguindo.Então, é muito esforço de parte da militância, em fazer com que as pessoas compreendam o que é o capital, o que é a mídia, o que é o estado, o governo dentro do estado, quais as aparelhagens do estado, por que a polícia... Isso nós tentamos minimamente trabalhar com as famílias, com as pessoas, explicar isso pras pessoas entenderem, porque senão elas não permanecem no Movimento.
Gustavo:
Vocês fazem discussão internamente sobre a mídia?Gilson (MST): Sem sombra de dúvidas, porque as pessoas permanecem porque têm um mínimo de consciência política, senão elas não permaneceriam.
Ungaretti:
Sou professor na área de jornalismo e os últimos 20 anos é cada vez menor o número de estudantes que estão diante de mim em sala de aula que tem um determinado nível de compreensão política do que está acontecendo no país. E, na verdade, grande parte de todas as estruturas dos cursos de jornalismo estão voltadas pra ensinar esse pessoal segurar microfone, gesticular, falar bonito, onde bota a mão, etc. Estou num local onde formam as pessoas que fazem a cobertura dos fatos sociais e sei que essa cobertura é cada vez pior. Nunca se fez um jornalismo tão ruim quanto nos tempos atuais. Todos os jornais iguais, coloridos, com textos de 30 linhas e eles dizem as mesmas coisas. Eu sou um professor nessa área (risos) e, evidentemente, que não vou ensinar isso. É importante que vocês tenham consciência de que há toda uma mão de obra que está sendo formada cujo objetivo é reproduzir os interesses dominantes, e não é desse tipo de universidades e desses cursos que vocês vão tirar as pessoas, por exemplo, para serem bons comunicadores. Eu não gosto desse termo “comunicadores”, inclusive, uso “comunicologia”, pra ridicularizar...Jefferson:
A postura do Movimento de não dar entrevista pra grande imprensa, parte dessa consciência? Vocês continuam não atendendo a RBS?Gilson (MST): A gente passa informações, por exemplo, sobre a marcha, onde vai parar, que a gente vai fazer debate com a sociedade, depois vai pro INCRA...
Gustavo:
Repórter da RBS bate o telefone, vocês respondem pra ele?Gilson (MST): É. Mas entrevista televisionada, nas rádios, nós não damos porque em outros momentos históricos foi totalmente distorcido, saiu totalmente outra coisa na televisão. É uma política do Movimento, pras grandes mídias...
Gustavo:
Tem muita gente que traz a questão, dentro da própria formação do jornalismo, de que a gente precisa mudar a mídia internamente, é se empregar na Zero Hora e aí sim conseguir fazer alguma coisa de dentro do jornal. Isso é uma mentalidade que a gente vê alguns movimentos usarem. O próprio PT, partidos de esquerda, ao invés de montar um veículo novo de comunicação, continuam tentando que a RBS faça um jornalismo decente, continuam acreditando que possa usar esses veículos. Como se deu esse processo de descrença nos veículos, pra não dar mais entrevista, foi porque viram que esses veículos estão a serviço do capital também?Gilson (MST): Todo mundo que sai às ruas, que faz algum tipo de mobilização, procura se expor pra comunidade, pra sociedade, colocar a pauta que está tentando transmitir. Nós do Movimento Sem Terra não somos diferentes. Quando fazemos uma ocupação no latifúndio, nós tentamos colocar porque fazemos esta ação; quando iniciamos uma marcha, divulgar o por que. Os meios de comunicação deveriam ter o papel fundamental de divulgar isso. Portanto, os grandes veículos de comunicação, e outros médios também, não cumprem esse papel de fazer a repercussão das mobilizações dos movimentos sociais. Faz alguns anos que nós não damos entrevista pro Zero Hora e RBS, por essa questão de distorcer todos os fatos. Tu diz que vai pra direita e eles colocam que vai pra esquerda.
Ungaretti:
Existe alguma atividade concreta de aproximação das posições e das experiências comunicativas de vocês com as das periferias? Existe uma tentativa de vocês romper com um certo isolamento se aproximando da periferia das grandes cidades?Jefferson:
Ouvi o João, companheiro de vocês do MST, falar que na visão dele essa marcha tem a característica da comunicação, da aproximação do Movimento com as pessoas na rua, nos locais em que o MST está se propondo a fazer debate, como nesse espaço agora. Uma característica de agitação e propaganda. Junto da marcha tem um grupo de pessoas fazendo panfletagem, divulgando as propostas do Movimento. Como está esse contato direto com a população, pra tentar levar uma informação diferente do que esta que é veiculada pela grande mídia?Gilson (MST): Em 1984, grande parte da população morava no campo, então o Movimento dos Sem Terra se constituía fortemente de campesinos, mas hoje pouquíssima parte da população ainda mora no campo. E quem ainda mora no campo é porque está lá encostado num fazendeiro... Então o Movimento ainda continua vivo porque automaticamente nos aproximamos da periferia das cidades. Nesses últimos anos nós tivemos que ir se aproximando, resgatando as pessoas. Porque muitos vieram pras cidades com a perspectiva de arrumar algum emprego, com a globalização, mas estão hoje nas periferias catando algum lixo, às vezes nem isso, nem um cavalo, uma carroça não tem pra fazer isso. Então hoje nós temos vários contatos, até em rádios comunitárias dentro das periferias, e com a piazada do hip hop. Mas também não é um afunilamento, dizer que estamos juntos.
Aproximamos também pra colocar a nossa pauta da reforma agrária, mas estamos aprendendo bastante com os trabalhos da periferia, aprendendo muito porque de lá se tira lições, tem grupos organizados... Ali, além de estar a pobreza, de estar os seres humanos discriminados da sociedade, é onde mora e se concentra as maiores forças da população.
Gustavo:
Mudou o perfil do integrante do MST nesses anos?Gilson (MST): Exatamente. Principalmente na Região Metropolitana. Em outras regiões do Estado, de onde a Cristiane faz parte, Região Sul, Fronteira Oeste, ainda a grande parte dos companheiros tem o perfil de camponês. Agora, na nossa região, tem gente com perfil camponês, mas tem também uma grande parte que não tem esse contato manual com a terra. O que a gente faz é conversar com as pessoas, trazê-las para o acampamento e lá internamente criar as condições de ir trabalhando, mexendo com a terra, iniciar pela horta, tem alguns cursos de agroecologia...
Gustavo:
Isso dentro do acampamento?Gilson (MST): Dentro do acampamento e fora. Às vezes se faz experiências para os acampados nos assentamentos.
Gustavo:
Então a pessoa sai de uma periferia da cidade, ela nunca trabalhou com a terra, mas precisa, essa fase de acampamento é também de capacitação da pessoa para depois que receber a terra estar...Gilson (MST): Exatamente.
Jefferson:
Esse é um ponto de incompreensão da sociedade, porque a gente ouve muitas pessoas criticarem o Movimento por conta disso, dizem que não são camponeses, é gente das favelas... E usam isso pra dizer que não é um movimento legítimo, como se a pessoa que está hoje na cidade não pudesse voltar para o campo.Gilson (MST): Todas as nossas origens são camponesas. Quando nós falávamos de recuperação do ser humano, das pessoas, porque muitas não sabem mexer com a terra... Mas nós também estamos trabalhando a questão do artesanato nos acampamentos e assentamentos, porque às vezes eu vou acampar porque eu não tinha o que comer, entendeu? No que tu sabes trabalhar? Então tu vai fazer brinco, tricô, balaio, o que tu puder fazer. Criar essas condições para que a pessoa se encontre também...
Ungaretti:
Hoje de manhã, na arrancada da marcha, me chamou a atenção o fato de que todo mundo tem uma função, tem o que fazer, todo mundo tem um lugar, uma atividade. E isso é uma coisa extremamente importante porque não deixa a pessoa solta, jogada...Jefferson:
Outra coisa que muitas vezes as pessoas pensam, e às vezes com a opinião formada pela imprensa, é de que as pessoas do Movimento não trabalham, não fazem nada, e dentro de um acampamento se trabalha muito, não é?Cristiane (MST): Dentro dos acampamentos, durante a semana, os acampados, as famílias têm diversas atividades. Nós temos os núcleos de base e cada um tem uma atividade, cada pessoa que faz parte daquele núcleo tem um setor ou a coordenação. E a coordenação do acampamento é tirada dos núcleos de base. Os setores têm reuniões pra se planejar, saber o que se vai fazer na semana. Nós temos linhas políticas, regras pras pessoas se habituarem e também respeitar, porque a gente está num coletivo e às vezes a gente trás da sociedade vícios e desvios. É uma forma de a gente acabar resolvendo alguns probleminhas que acontecem. E aí tem a escola itinerante também, onde as crianças estudam, militantes que saem dos acampamentos ou assentamentos fazem cursos nos centros do movimento e vão contribuir nas escolas.
Gustavo:
Qual o núcleo que tu participas?Cristiane (MST): Desde que fui acampar, por já estar fazendo um curso no Movimento e conhecer um pouco da organicidade, eu já vim pra uma instância que é dar alinhamento político do acampamento, que são as brigadas de organicidade. As famílias indicam e aquele grupo ali que, depende o acampamento tem de 12 a 15 pessoas, conduzem as reuniões, os problemas, os próprios planejamentos. Não deixa de ser um núcleo, tem uma responsabilidade...
Ungaretti:
Vocês recebem a oferta, a proposta de pessoas dispostas a dar aula, fazer algum curso, atividade, trabalhar em algum lugar para o Movimento? É comum, incomum, acontece um professor chegar pra vocês: Olha, eu estou disposto a trabalhar, o que vocês estão precisando?Cristiane (MST): Na nossa região acontece. Por exemplo, agora temos uma companheira lá que é da Argentina, e ela está ajudando no setor de educação dando aula. Mas não sei se nas outras regiões acontece isso também.
Claudia:
Quem dá aula são professores formados, assentados mesmo, quem são?Cristiane (MST): Geralmente alguns militantes que fazem curso de Magistério, que já tem uma caminhada, e algumas pessoas que têm um conhecimento maior pra trabalhar com as crianças.
Gustavo:
A escola itinerante, que é legalizada e tem suporte de Estado, recentemente houve uma tentativa de “deslegalização”, digamos assim, pelo governo Yeda. Os acampamentos estão sofrendo com falta de material e problemas na questão legal das escolas?Gilson (MST): Essa situação da escola é bem complicada com os governos. É legalizada pelo MEC, principalmente as itinerantes, que são as escolas dentro do acampamento. Porque nós temos o Iterra, em Veranópolis, tem a Florestan Fernandes em São Paulo, que nós temos cursos de pedagogia, educação, sociologia rural, outros cursos políticos também. Essas não dão tanto problema porque tem um prédio. Agora, um acampamento não tem um local fixo por quatro ou cinco anos, até porque muitas vezes a Brigada vai lá e retira o acampamento. Então tem que ir pra outro lugar e a escola vai junto, é itinerante. Mas falta merenda, que não vem nas datas certas, material “mal e porcamente” chega nos acampamentos. É um desleixo total do Estado. Nós tentamos criar alternativas de conseguir material, de conseguir alimento pras crianças e nós mesmos ir tocando a escola itinerante da forma possível e melhor que dá, porque se nós esperarmos pelo Estado dar sustentação, não existiria mais escola itinerante.
Jefferson:
De que forma a sociedade pode apoiar o Movimento, seja trocando idéias, debatendo com as pessoas, seja apoiando materialmente mesmo? Por exemplo, uma marcha despende recursos, estrutura... Sem o trabalho dos apoiadores vocês conseguiriam fazer a marcha, ou é fundamental nessas ações receberem apoio? Pra quem descobre o MST como uma organização importante e gostaria de colaborar, como faz?Gilson (MST): É fundamental a importância de ter pessoas, companheiros e companheiras que nos apóiam, até porque se nós não tivéssemos de pequena parte da sociedade... A sociedade tem respeito pelo Movimento dos Sem Terra. Pode não nos apoiar no geral, mas tem um mínimo de respeito porque também não é hoje ou ontem que o Movimento está aí nas ruas batalhando. São vinte e poucos anos de história. Tem dois tipos de apoiadores: aquele que vem pra luta, vem pra dentro das escolas dar aula, e tem apoiador que simpatiza com a luta, ajuda com roupa, com doação de material pra escola, com leite quando o Governo não manda para as crianças do acampamento. Tem o que ajuda com o ginásio de esportes para a gente ficar quando se está passando com uma marcha. Os dois perfis são importantes. O bom seria que nós tivéssemos bem mais apoiadores, que aí sim a gente conseguiria...
Ungaretti:
Então tem como as pessoas chegarem e se dispor a contribuir?Gilson (MST): Tem. Nós podemos deixar números de telefone, endereço para as pessoas irem visitar os acampamentos. É muito importante a visita nos acampamentos, porque quem não conhece e está escutando essas últimas notícias na imprensa, que foi aquele relatório do MP criminalizando o MST, fica confuso, porque era um movimento que fazia a luta pela terra e daqui a pouco está cortando eucalipto, então as pessoas ainda não estão entendendo o que está acontecendo. Então a importância de ir a um assentamento, visitar um acampamento eu acho que é um dos maiores apoios nesse momento, porque lá sim a gente vai poder conversar, tomar chimarrão, falar. E aí sim nós achamos os outros meios, ajudar nós, nós também podemos ajudar outros...
Gustavo:
Uma campanha pras pessoas antes de falarem do MST irem lá conhecer, que vão ser recebidos...Gilson (MST): Bem recebidos.
Claudia:
Vocês têm noção da reação que houve a esse documento do Ministério Público, inclusive, de juristas? Ficou horrível para o Ministério Público Estadual, teve uma repercussão internacional de revolta e eles tiveram meio que voltar atrás, dizer que aquilo era uma ata de um conselho, mas fizeram uma retificação depois. Vocês têm uma avaliação disso?Gilson (MST): Temos. Algumas forças da esquerda que estavam meio que distantes do Movimento Sem Terra, devido também a algumas contradições no campo da política, quando veio essa ofensiva... Na nossa avaliação o MP foi usado como fachada. Por trás está todo um outro corpo de interesses, das multinacionais, das transnacionais, do estado... Mas no RS não deu tanta repercussão quanto foi a nível nacional e internacional. No Estado foi um pouco abafada a situação. Agora, em nível nacional e internacional conseguimos mobilizar várias figuras clássicas da sociedade, de cargos importantes, presidente da OAB, documentos pra OEA...
Ungaretti:
Hoje eu observei, filmei, fotografei, que a postura de, vamos dizer “boa condução” que a Brigada Militar faz da marcha, é uma postura que assusta a população e isola vocês da população. A marcha vinha normal e aí quando ela entra em Porto Alegre, sai de dentro do ônibus da Brigada Militar os caras com armas, já tinha sido todo mundo revistado, etc. E aí não havia nenhuma razão pra que num determinado momento descesse todos novamente, armados. O que me chamou a atenção foi que num momento em que há uma grande visibilidade porque vocês estão entrando na cidade, há um cordão armado que assusta a população que está vendo, e que isola vocês do restante da população. Vocês se deram conta disso?Gustavo:
Isso é uma prisão itinerante.Ungaretti:
Porque vinha um cara da Brigada Militar caminhando, sem nenhum problema, aí chega num determinado momento, logo ali na entrada da avenida Farrapos, o ônibus pára, desce os caras todos armados, botam um cordão que assusta a população e impede, nitidamente, qualquer relação de vocês com as pessoas.Gustavo: A mensagem que se passa pra quem está de fora olhando é: tu tem que ter medo daqueles caras lá...Jefferson:
Mesmo que o Coronel diga depois que não encontrou nenhuma arma, a Brigada já colocou o MST como um grupo a se temer por conta desse aparato policial todo que se construiu em torno da marcha...Ungaretti:
Não encontrou nenhuma arma, não houve nenhum incidente, não houve nada, não tinha nenhum problema. Só que a estrutura que está acontecendo é extremamente ameaçadora em relação à população e extremamente de isolamento em relação a vocês. Fiquei impressionado com isso, assim como fiquei impressionado que a imprensa só estava presente no momento da revista. Quer dizer, o que vai ao ar hoje à noite no noticiário é a revista. A idéia que passam é de que estão protegendo a população contra o MST.Gustavo:
A gente está derrubando alguns mitos nessa conversa, que são clássicos em relação ao MST. Tu disseste que fez um curso em Pontão numa escola técnica, tinha curso de milícia, de guerrilha lá? Fazer bomba? Me diz onde é isso, por favor. (risos gerais)Ungaretti:
Os instrutores eram das Farcs? (risos gerais)Gustavo:
Quantas escolas dessas existem no RS e que tipos de cursos são oferecidos? É só pra integrantes do MST?Cristiane (MST): No Educar, em Pontão, tem principalmente este curso técnico em agropecuária com habilitação em agroecologia, que tem formação política junto, mas não tem ninguém das Farc lá... (risos) Tem o Iterra, em Veranópolis, que oferece vários cursos, por exemplo, magistério, curso de saúde, licenciatura... No Educar é pra Via Campesina. No Iterra também. Via campesina é do MAB, MPA... Às vezes um apoiador pode fazer, dependendo da disponibilidade. O curso é subsidiado. Não pagamos. Nós não temos condições financeiras de pagar.
Gustavo:
Desde que eu conheci a fundo o MST, que foi no início do ano passado, quando viajei pra todos os cantos do RS, vi que literalmente o MST tem se tornado uma instituição que é substitutiva ao estado em várias formas. Age como reintegração social das camadas mais excluídas da população das cidades, formação... Essas escolas técnicas se subsidiam cursos para filhos das pessoas que estão no Movimento, estão fazendo uma escola pública. Como é a relação das prefeituras com os acampamentos? Se o MST pega aquelas pessoas e tira da cidade, que lá são um problema, e lá no acampamento como há um processo de reeducação, deixa de ser problema, reduz violência nas cidades e uma série de coisas, como é essa relação com as prefeituras?Jefferson:
Coqueiros do Sul, por exemplo, companheiros de vocês disseram que a prefeitura da cidade está sentindo falta do MST, que os comerciantes estão sentindo falta do acampamento, que a saída do acampamento repercutiu na economia do município e tem muita gente querendo vocês lá de volta.Gilson (MST): Isso que era um acampamento. Imagina se fosse um assentamento... (risos gerais) Nesse relatório do Ministério Público, tem uma parte que diz que o MST é um estado paralelo. Nós não somos nenhum estado paralelo, agora, nós tentamos criar coisas paralelas que, minimamente, dê aos companheiros e as companheiras, aos seres humanos uma vida mais digna. Talvez seja isso que o MP e o Governo estão querendo falar. Porque não estamos tentando criar um estado paralelo, não queremos ter um presidente, até porque rejeitamos esse estado colocado aí, a constituição dele, mas queremos sim criar alternativas para que os seres humanos tenham uma vida melhor. E aí as alternativas estão colocadas, de estudo, profissão, de colaboração, um monte de coisas. São muitas alternativas que nós criamos para as pessoas se recuperarem. Não é do dia para a noite que se recupera também. Alguns não conseguem, saem, mais tarde voltam, e aí conseguem. Então é um processo lento. Outros conseguem mais rapidamente... Mas normalmente a maioria das prefeituras tem uma política de isolar o Movimento Sem Terra, que não é o caso de Coqueiros, que tinha uma relação muito boa, mas a maioria das prefeituras fazem um processo de isolamento, que é não botar abastecimento de água potável pro acampamento, não passar pra recolher o lixo, é os companheiros, mulheres, homens e crianças não terem ambulância pra levar ao posto de saúde, é chegar no posto de saúde e ser maltratado... Em muitos municípios que nós temos acampamentos acontece isso, de rejeição do Movimento. Mas não é uma rejeição geral dos companheiros do município, é uma rejeição institucional. As prefeituras costumam dizer: “vamos ter mais povo e nós vamos gastar mais dinheiro, vocês não estavam no orçamento, não estava previsto que vocês vinham morar aqui”. Em Nova Santa Rita, a relação com o atual prefeito não é nada boa. Em Tupanciretã pode-se dizer que a relação é tranqüila.
Jefferson:
Pra quem acredita que o MST é uma organização violenta, o que vocês têm a dizer?Gilson (MST): Essa ofensiva de tentar criminalizar nós enquanto organização guerrilheira ou ter ligação com as Farc não funciona porque o Movimento Sem Terra é um movimento conhecido e reconhecido no Brasil e internacionalmente, todo mundo sabe o porquê nós fazemos a nossa luta, quais os objetivos, que é terra, educação, a melhor vida pras famílias, direito a ser um ser humano de fato. Que o estado compreenda a nossa luta e que a população brasileira também, que nos apóie.
Gustavo:
A pressão que houve em cima de Coqueiros, está acontecendo em outros acampamentos no RS? Quais são os pontos mais críticos no Estado, após Coqueiros, nessa ofensiva contra o MST?Gilson (MST): O MST tem áreas símbolos. A Fazenda Guerra é uma área símbolo do Estado e da Região Norte especialmente, porque as famílias que são daquela região querem ser assentadas por lá. Elas tinham a Guerra como área símbolo pra pressionar por assentamentos. Porém, o Estado, junto com o Ministério Público começaram a desenvolver esse relatório em sigilo e incluíram as áreas símbolo nossas como táticas de tomada do poder. Dizem que a Fazenda Guerra é porque fica na divisa com SC, saindo do RS, e já tem outro assentamento ali que é de Pontão (Anoni), aí aconteceu isso com o acampamento de Coqueiros do Sul. A Granja Nenê é porque fica perto do Pólo Petroquímico, e a argumentação é de que nós podíamos deixar Porto Alegre sem luz, porque passa o gasoduto, porque passa os trilhos de trem, porque tem um rio, que é uma área estratégica. E a Southal é porque fica na divisa com Uruguai e Argentina, então pode-se escapar do país facilmente, e porque passa os trilhos da América Latina Logística. Isso foi usado como base no relatório. Então tem os acampamentos Nenê, o de Pedro Osório e um acampamento em são Gabriel que tem pedidos já oficializados pelo Ministério Público, pra que as pessoas não possam se mexer. Estão num processo de congelamento dos acampamentos. Não pode se mobilizar porque senão a Brigada faz a retirada. Então a argumentação é essa: “estratégia pra tomar o poder” (risos).
Ungaretti:
Um delírio. Fiquem vocês sabendo que existem jornalistas que não são da mídia corporativa e que estão dispostos a escrever, fotografar... É importante que vocês saibam que tem gente nessa área disposta a contribuir, a colaborar, colocar a sua experiência como jornalista, como profissional, a disposição de vocês.Hélio (Resistência pós-moderna):
A grande mídia, apesar de toda essa concentração na mão de poucos, de criminalizar os movimentos, estar sempre ao lado do poder, eles deixam uns furos. Hoje, felizmente pra vocês, apesar do problema da criminalização e da polícia, tem outro lado, viraram moda alimentos sem agrotóxicos, alimentos não transgênicos...Me ocorreu que, nesse tipo de articulação que vocês fazem com as periferias das grandes cidades, vocês chegam a ensinar o pessoal a plantar alguma coisa? Chegar: “Se vocês souberem plantar, esse alimento aqui é bom, vocês vão poder vender para alguém, manter os filhos de vocês perto”.Esssas pessoas vão ser os empregados domésticos, vão ser os motoristas, os jardineiros da classe média ou alta que tem ódio, aí quando o patrão falar mal do MST eles vão dizer: não, senhor, não senhora, não é assim. O grande problema é que a população rural é pequena demais, e quem vive na cidade só vai pro campo fazer turismo e não conhece nem se envolve com as pessoas que são de lá. Então, trazer o campo pra cidade. Em Nova Iorque tem gente que planta em terrenos pequenos de 80m², muitos produtos agrícolas diferentes, plantam flores comestíveis, vários hortigranjeiros, verduras, quem tem galinha no seu quintal troca ovo com o vizinho que tem alface e assim por diante.Gilson (MST): É uma experiência que eu acho que nós vamos viver logo aí adiante. Não chegamos nesse ponto do campo na cidade, porque o Brasil ainda é muito grande.
Ungaretti:
Vocês sabem o que é permacultura?Gilson (MST): Vocês conhecem o centro de formação aqui em Viamão? Ali estamos construindo uma biblioteca bem grande sobre permacultura. Nós temos algumas iniciativas de permacultura que funcionam ali.
Gustavo:
Como vocês estão vendo o cumprimento dessa agenda de duas mil famílias assentadas, como vai ser a continuidade dessa pressão? Porque o INCRA está sucateado, principalmente depois que entrou o Guilherme Cassel. Como o MST vai continuar a pressão pra que a agenda de duas mil famílias seja cumprida?Gilson (MST): De uma forma ou de outra nós temos que continuar se mobilizando e fazendo pressão. Não digo tanta mobilização em massa, mas fazendo jejum, feira da reforma agrária no centro da cidade, mostrando o projeto do MST... Mas o governo estadual e federal não tem projeto pra reforma agrária. Então, de fato, vai ficar bem complicado pro INCRA assentar as duas mil famílias até o final do ano, sem ter no mínimo um projeto em nível nacional. Pra se ter idéia, os índices de produtividade são de 30 anos atrás. Aí o governo faz todo um discurso da tecnologia chegando ao campo, mas os índices de produção são de um boi por hectare, por exemplo. E tem uma lei, que diz que a terra que não cumpre com sua função social tem que ser desapropriada para fins de reforma agrária. Portanto, o INCRA nunca vai encontrar essas terras porque os índices de produtividade são de 1975. Se encontrasse, não precisaria pagar em dinheiro, mas nunca vai encontrar.
Jefferson:
Por que os índices de produtividade não são atualizados?Gilson (MST): Não são atualizados por interesses da classe burguesa. Se fossem atualizados os índices, se faria uma reforma agrária no Brasil. Então, boa parte do processo da reforma agrária não depende da vontade do governo fazer, nem da vontade do MST em se mobilizar. A reforma agrária sair está nas mãos dos latifundiários venderem ou não áreas pro INCRA. A Dilma Roussef falou na imprensa que só vão ser desapropriadas áreas para reforma agrária se o proprietário estiver de acordo. Isso quer dizer que reforma agrária só vai acontecer no país se o latifúndio estiver de acordo.